STF decide que a decisão sobre o aborto de feto anencéfalo cabe à gestante


O aborto de feto anencéfalo estava sendo uma questão muito discutida e controversa na jurisprudência atual, tendo em vista a inexistência de uma norma que regulamentasse o assunto. A anencefalia se caracteriza pela ausência parcial do encéfalo e da caixa craniana do feto em consequência de defeito de fechamento do tubo neural nas primeiras semanas da formação embrionária, e trata-se de defeito congênito e irreversível.
Apenas recentemente, em 12 de abril de 2012, no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental - ADPF 54, ajuizada no ano de 2004 pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), é que o Supremo Tribunal Federal finalmente posicionou-se sobre o assunto.
Segundo a CNTS, em 65% dos casos de gestação de feto anencéfalo, o feto morre ainda no interior do útero. Quando o feto resiste e consegue sobreviver ao parto, quase que na totalidade dos casos, vem a falecer poucas horas depois em decorrência de parada cardiorrespiratória.
O que talvez tenha prolongado a discussão acerca da possibilidade ou não de interrupção da gravidez nos casos de feto anencéfalo no Brasil foram as questões religiosas, bem como o caso isolado da menina de Patrocínio Paulista (SP), Marcela de Jesus Galante Ferreira, diagnosticada como anencéfala, que sobreviveu por um ano, oito meses e doze dias.
Em relação ao caso da jovem, alguns especialistas levantaram a hipótese de tratar-se na verdade de microcefalia (desenvolvimento reduzido do cérebro), enquanto outros - entre eles a própria pediatra de Marcela - defenderam que o caso da jovem era de uma anencefalia atípica.
Enquanto no Brasil a questão ainda era discutida, em mais da metade dos países que integram a Organização das Nações Unidas a interrupção da gravidez em casos de anencefalia já era reconhecida como um direito da mulher, segundo levantamento realizado pela professora da Universidade de Brasília, Débora Diniz.
O procedimento já era permitido em países como Austrália, Estados Unidos, Alemanha, Bélgica, Canadá, África do Sul, França, e inclusive em países majoritariamente católicos como Portugal e Itália.
Os únicos casos de interrupção terapêutica da gravidez admitidos legalmente no Brasil são aqueles expressamente trazidos pelo artigo 128 Código Penal: caso não haja outra maneira de salvar a vida da gestante ou caso a gravidez seja resultante de estupro e a vítima gestante opte pelo aborto.
O Supremo Tribunal Federal, entretanto, no julgamento da já mencionada ADPF 54, por 8 votos a 2, vencidos os Ministros Cezar Peluso e Ricardo Lewandowski, declarou a inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo seria conduta criminosa tipificada nos artigos 124, 126, 128, incisos I e II, todos do Código Penal. O Ministro Antonio Dias Tóffoli, 11º componente da Corte, declarou-se impedido de votar, pois anteriormente, quando era advogado-geral da União, já havia se posicionado favoravelmente à possibilidade de interrupção da gestação nos casos de anencefalia.
A interpretação consolidada pela Suprema Corte demonstra que sabiamente o judiciário não deve ficar adstrito apenas às questões positivadas na legislação pátria, mas é imprescindível que haja um juízo de valor diante dos fatos concretos como o sofrimento de mulheres que por meses alimentavam uma gestação, com a consciência de que, caso o feto já não fosse natimorto, iria a óbito em questão de horas.
Nada parece mais acertado do que, à luz do princípio da dignidade da pessoa humana, abrir a possibilidade de que as próprias gestantes de fetos anencéfalos decidam, segundo seus próprios princípios, crenças e valores, por continuar ou interromper a gestação, sem que uma eventual decisão pela interrupção venha a ser configurada como conduta criminosa.

Artigo escrito pela advogada do escritório Fernando Quércia Advogados Associados, Roberta Raphaelli Pioli.

Kamyla Alves
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