BAHIA: SINDICATO DE SERVIDORES PENITENCIÁRIOS E CONFEDERAÇÃO NACIONAL BUSCAM RECONHECIMENTO DE INCONSTITUCIONALIDADES NO SISTEMA PRISIONAL BAIANO

por Carlos Quadros

Após inúmeras solicitações do Sindicato dos Servidores Penitenciários da Bahia (SINSPEB), a Confederação dos Servidores Públicos do Brasil (CSPB) ingressou com Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), perante o Supremo Tribunal Federal (STF), pleiteando o reconhecimento do estado de coisas inconstitucional no sistema penitenciário baiano em razão de uma série de violações à direitos e garantias fundamentais.

Os preceitos violados constam no art. 1°, III (Princípio da Dignidade da Pessoa Humana), art. 5, caput (Isonomia), art. 5º, III (Vedação a tortura e a tratamento desumano ou degradante) art. 37, caput (Princípios da moralidade, impessoalidade, legalidade), art. 37, II (Instituto do Concurso Público) e Art. 70 (Princípio da economicidade). Todos da Constituição Federal de 1988.

As violações decorreram de atos omissivos e comissos do Estado da Bahia, quais sejam: I- Contratação de Agentes Penitenciários temporários e terceirizados quando existente concurso público com mais de mil candidatos aprovados; II-. Prorrogação ilegal de processo seletivo para contratação de servidores temporários; III- divulgação de editais licitatórios (Possibilitando à empresa vencedora a contratação de Agentes Penitenciários celetistas); IV- Inobservância à recomendação 01/2009 do Conselho Nacional de Políticas Penitenciárias.

Conforme art. 37, II, da Carta Magna, a regra para ingresso no serviço público é a aprovação em concurso, sendo as demais formas de investidura admitidas somente em casos excepcionais.

A contratação de temporários e celetistas em detrimento de servidores efetivos, aprovados em processo concorrencial, viola a moralidade administrativa e coloca em risco a vida e a integridade física daqueles que não possuem estabilidade, tendo em vista a periculosidade do cargo. Saliente-se que a estabilidade na função de Agente Penitenciário é determinação da Organização das Nações Unidas (ONU).

A desproporção entre Agentes Penitenciários e presos no estado da Bahia torna ineficaz o atendimento às necessidades básicas do encarcerado. Os serviços médicos, psicológicos, sociais, jurídicos, religiosos etc., são prejudicados por conta do reduzido quantitativo de servidores.

De acordo com a Secretaria de Administração Penitenciária e Ressocialização do Estado da Bahia (SEAP), existem 13.161 (treze mil, cento e sessenta e um) presos custodiados e apenas 1.184 (mil centos e oitenta e quatro) Agentes Penitenciários. Tal discrepância gera insegurança aos que laboram no sistema. As rebeliões e fugas aumentam de forma gradativa, sem que medidas preventivas sejam adotadas.

Diante da secular inércia e da visível incapacidade em solucionar o problema, requereu-se o reconhecimento do Estado de Coisas Inconstitucional.



Da mesma forma, postulou-se à Suprema Corte o cumprimento da Resolução 01/2009, do Conselho Nacional de Políticas Penitenciárias, que idealiza a proporção de 1 (Um) Agente Penitenciário para cada 5 (Cinco) presos e das “Regras Mínimas para Tratamento de Prisioneiros” (ONU), que trata da necessidade de o Agente Penitenciário gozar de estabilidade.

Não obstante isso, o Eminente Ministro Relator, Marco Aurélio, negou seguimento à ADPF.

Um dos fundamentos utilizados pelo nobre Ministro fora o caráter subsidiário do instrumento. In verbis:
“(...) A leitura revela a pertinência da arguição quando inexistir outro meio eficaz capaz de sanar a lesão a preceito fundamental. O Supremo consignou que o caráter subsidiário da arguição há de ser considerado. A regra geral é: deve-se observar o princípio da subsidiariedade tendo em vista a viabilidade de admissão das demais ações previstas para o exercício do controle concentrado.

O entendimento merece sofrer temperamentos. A amplitude do objeto da arguição de descumprimento de preceito fundamental não significa admitir que todo e qualquer ato que não possua caráter normativo seja passível de submissão direta ao Supremo. A óptica implicaria o desvirtuamento da sistemática de distribuição orgânica da jurisdição assegurada na Constituição Federal.

A arguição de descumprimento de preceito fundamental é instrumento nobre de controle de constitucionalidade objetivo, destinado à preservação de dispositivo nuclear da Carta da República. Descabe utilizá-la para dirimir controvérsia diversa. Se isso fosse possível, ter-se-ia situação incompatível com o Diploma Maior, transmudando a natureza da ação. ”

A doutrina e a jurisprudência convergem no entendimento de que pressuposto da subsidiariedade da ADPF (art. 4º, § 1º, Lei 9.882/99) se configura sempre que inexistirem instrumentos, no âmbito do controle abstrato de constitucionalidade, aptos ao equacionamento de questão constitucional.

De acordo com o Jurista Dirley da Cunha Junior[1]:

“Defende-se, neste trabalho, o caráter subsidiário exclusivamente da arguição incidental. Isso significa afiançar, noutros termos, que a regra da subsidiariedade tem incidência restrita, pois somente alcança a modalidade de arguição incidental, e mesmo assim, comportando exceções. Mas jamais alcança a arguição direta ou autônoma, como se analisa a seguir.

De feito, o legislador constituinte, ao consagrar a arguição de descumpri¬mento de preceito fundamental, buscou criar um instituto que servisse unicamente, e com exclusividade aos preceitos constitucionais considerados os mais relevantes para o equilíbrio e subsistência do próprio sistema constitucional. Com isso, intentou afastar, a princípio, a titularidade dessa proteção, de outras ações especiais também previstas constitucionalmente como mecanismos de defesa da supremacia dos preceitos constitucionais, que passaram a ostentar, estas sim, a condição de ações reservas ou subsidiárias no sistema de defesa destes preceitos magnos.

Desse modo, o constituinte de 1988 deflagrou um reposicionamento entre as ações diretas de controle abstrato de constitucionalidade, para reservar a titularidade da defesa dos preceitos constitucionais fundamentais à arguição de descumprimento, deixando a proteção das demais normas constitucionais para a já existente ação direta de inconstitucionalidade e a novel ação declaratória de constitucionalidade. ”

O professor André Ramos Tavares[2] possui entendimento semelhante:

“Independentemente desse argumento, que admitira a ADPF (mas, concomitantemente, um sistema de sobreposição aleatória de ações distintas), tem-se que, com a introdução da ADPF, o mais coerente e constitucionalmente admissível será para ela desviarem-se todos — insista-se uma vez mais — todos os casos de descumprimento de preceitos fundamentais da Constituição. A especialidade (e essencialidade) do instituto da ADPF encontra-se, portanto, aqui. É resultado alcançado por uma compreensão sistemática da Constituição e do modelo brasileiro de controle da constitucionalidade. Com essa estruturação a medida estaria, como se percebe, angariando parte do que, historicamente, tem pertencido à ação direta dita genérica. ”

Ou seja, todas as demandas em que haja violações a preceitos fundamentais devem ser combatidas por meio de ADPF, não sendo aceitável qualquer vedação ao seu manejo.

O Eminente Ministro Relator citou a existência de Ação Popular e Ação Civil Pública em instância originária. Todavia, não há qualquer impedimento à propositura da Arguição, mesmo porque o que se pleiteia é a obtenção do controle concentrado de constitucionalidade e não somente a resolução de casos concretos. Outrossim, as ações propostas não guardam relação com a ADPF.

Quanto ao pedido de reconhecimento do estado de coisas inconstitucional, a Confederação citou a inércia do Poder Legislativo ao tratar do sistema penitenciário. Não há criação de cargos de Agente Penitenciário nem regulamentação de procedimentos corriqueiros, como revistas intimas e escolta de presos.

Saliente-se que a abordagem do sistema prisional não traz voto! Os Agentes Penitenciários e os presos fazem parte de uma minoria quase que invisível e não podem depender do processo legislativo majoritário. O papel das Cortes Constitucionais de Justiça é justamente o reconhecimento de direitos fundamentais das minorias.

Da mesma forma, o Poder Judiciário não consegue impor ao Poder Executivo as suas decisões. A título de exemplo, o Magistrado Mario Soares Caymmi Gomes, da 8º Vara da Fazenda Pública da Comarca de Salvador-Bahia, ameaçou o Governador do Estado da Bahia de prisão por descumprimento de uma liminar:
“Tendo em vista que, mesmo após a cientificação pela Procuradoria do Estado, o réu não tratou de demonstrar o cumprimento da decisão interlocutória proferida, ordeno sejam expedidos mandados de intimação ao Excelentíssimo Senhor Governador do Estado da Bahia assim como ao Secretário de Fazenda para que tratem de cumprir a ordem em 24 horas, sob pena de pagamento PESSOAL de multa, que majoro para R$ 5.000,00 por dia e por cada um dos aprovados da seleção em questão que, incluídos dentro do número de vagas do Edital, não tenha sido nomeado, caso não seja cumprida esta ordem no prazo assinalado.

Advirto as autoridades supra referidas que, caso não haja o cumprimento, será dirigido ao TJBA pedido para PRISÃO EM FLAGRANTE DOS MESMO EM RAZÃO DE PRÁTICA DE CRIME DE DESOBEDIÊNCIA.

De imediato ordeno a remessa dos autos ao Ministério Público para que verifique a prática de ato de improbidade administrativa. ” (Grifos nossos)

A decisão vem sendo descumprida...

Assim, flagrante o desrespeito entre o Poder Executivo e Judiciário. Enquanto este não consegue impor os seus comandos judiciais, aquele os trata com menosprezo e indiferença.

Recentemente, 10 (dez) pessoas foram brutalmente assassinadas em rebelião ocorrida na unidade prisional de Feira de Santana-Bahia[3]. Dois custodiados foram degolados no evento, sendo suas cabeças substituídas por bolas de futebol, em partida realizada por uma facção criminosa[4].

A “partida de futebol” foi previamente agendada, bem como as “bolas” que seriam utilizadas, ou melhor, os seres humanos que seriam degolados.

Era uma final de campeonato! Emoção à flor da pele! Houve intensos debates a respeito da escolha e do tamanho das “bolas”. Ao término da construtiva discussão, optaram pelos dois seres (Ou coisas) com a maior “bola”.

Nesse ínterim, o aumento de fugas e rebeliões ratifica a completa inércia do Poder Executivo. O desleixo não se restringe ao descumprimento de decisums, mas engloba, também, ausência de políticas penitenciárias.

O Estado de Coisas Inconstitucional foi reconhecido pela Suprema Corte quando da propositura da ADPF 347[5]. Na ocasião, buscou-se a correção de lesões a preceitos fundamentais por parte da União, dos Estados e do Distrito Federal no tratamento da questão prisional no país.

Não obstante os robustos fundamentos lançados e a similaridade entre as duas ADPF, o Eminente Relator entendeu como inadequado o reconhecimento do estado de coisas inconstitucional no sistema prisional baiano:

“Surge inadequado o manuseio da arguição na situação versada na inicial. A autora busca o reconhecimento de estado de coisas inconstitucional no sistema penitenciário do Estado da Bahia em virtude de ilegalidades na contratação de agentes penitenciários, as quais não justificam a intervenção direta e concentrada do Supremo.

Consoante fiz ver no exame da arguição de descumprimento de preceito fundamental nº 347, o estado de coisas inconstitucional consiste em mecanismo excepcional de atuação jurisdicional, ante paralisia institucional extraordinária. É impróprio utilizar a ação para substituir as medidas processuais ordinárias, voltadas a impugnar atos tidos como ilegais ou abusivos. ”

Vale ressaltar que o pedido não se restringiu à mera contratação de servidores, mas sim à inobservância da proporção de um Agente Penitenciário para cada cinco presos e à necessária contratação de servidores estáveis.

Em suma, o Poder Legislativo não cumpre a sua função, o Poder Judiciário não impõe os seus comandos judiciais e o Poder Executivo, além de descumpri-los, é inerte quanto a adoção de políticas penitenciárias efetivas.

A gravidade dos fatos justifica a adoção de medidas excepcionais, mesmo porque trata-se, por exemplo, de violação ao princípio da dignidade da pessoa humana, classificado por alguns como norma principiológica de caráter absoluto. Contrario Sensu, restaria a dúvida: O que é excepcional? Quem define a excepcionalidade?

A entidade tratou do concurso público vigente para provimento do cargo de Agente Penitenciário como solução paliativa à falência do sistema prisional baiano e inobservância de determinações do Conselho Nacional de Políticas Penitenciárias e da Organização das Nações Unidas. Ou seja, a nomeação de candidatos aprovados em concurso ameniza as irregularidades ventiladas.

Como já dito, o Ministro Relator negou seguimento à Arguição proposta. Diante de tal decisão, um agravo regimental fora interposto e a matéria deve ser debatida em plenário pelos Ministros do STF.

Enquanto isso, as entidades buscam, politicamente, amenizar os problemas no sistema prisional baiano por meio de reuniões com o Poder Executivo. Destarte, algumas medidas judiciais perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a ONU estão sendo elaboradas.


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[1] DA CUNHA JR. Dirley. Controle de Constitucionalidade - Teoria e Prática. 8. ed. Juspodivm, 2016.
[2] ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL: ANÁLISE DA EVOLUÇÃO DO INSTITUTO SOB A CONSTITUIÇÃO DE 1988 < https://www12.senado.leg.br/publicacoes/estudos-legislativos/tipos-de-estudos/outras-publicacoes/volume-iii-constituicao-de-1988-o-brasil-20-anos-depois.-a-consolidacao-das-instituicoes/jurisdicao-constitucional-arguicao-de-descumprimento-de-preceito-fundamental-analise-da-evolucao-do-instituto-sobre-a-constituicao-de-1988>. Acesso em 15 de junho de 2016.
[3] http://atarde.uol.com.br/bahia/noticias/1683507-rebeliao-em-presidio-de-feira-de-santana-chega-ao-fim
[4] https://www.youtube.com/watch?v=I281vOAodS0
[5] http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=4783560
*CARLOS QUADROS é Bacharel em Direito, Pesquisador,integrante do ESCRITÓRIO SANTANA ADVOCACIA, com unidades em Senhor do Bonfim (Ba), Salvador (Ba) e Brasília (DF).
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